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O Conflito entre a Águia e a Serpente

“- Você não está sugerindo que as mulheres são mais infelizes do que os homens, está? - Claro que não, só estou dizendo que as mulheres se deparam com uma infelicidade que é particularmente inevitável e absolutamente desnecessária.” Malina, Ingeborg Bachmann O conflito entre a águia e a serpente, primeira exposição individual de Fernanda Feher na Galeria Millan, empresta seu título de uma instalação inédita de desenhos que ocupa o espaço central da galeria. Nos últimos cinco anos, a artista vem realizando pinturas figurativas permeadas por elementos autobiográficos que retratam personagens femininas em meio a paisagens naturais ou sobrenaturais. Feher possui um gosto pelos motivos decorativos, um olhar atento aos pequenos detalhes e uma paleta de um colorido vibrante e sedutor. Suas composições intrincadas muitas vezes incorporam a colagem de imagens recortadas de livros e revistas, papeis estampados ou pequenos objetos que se projetam para além da superfície da pintura. Essas características, que se tornaram ainda mais acentuadas nos últimos anos, já estavam presentes na série de pinturas realizadas por volta de 2015, em que a artista retratava amigos e conhecidos em seus ambientes domésticos. Nesses trabalhos, encontramos uma atmosfera gentil, análoga talvez àquela dos retratos de indivíduos afluentes em suas casas confortáveis produzidos por David Hockney na Califórnia dos anos 1960. Ali já era claro o interesse da artista em reproduzir minuciosamente os detalhes decorativos desses ambientes, com as figuras sempre acompanhadas de uma vegetação tropical e de animais silvestres cuja presença traz um dado inusitado a esses retratos domésticos. Mais recentemente, o imaginário de Feher extrapolou o ambiente da casa para criar toda uma mitologia pessoal que se espalha através de paisagens naturais nas quais predominam as figuras femininas e os animais selvagens. Nessa passagem para a natureza, permanece o colorido vibrante, e as cenas ganham uma maior complexidade e diversidade de elementos pictóricos. Do ponto de vista estilístico, lembram as ilustrações do celebrado artista outsider Henry Darger, (1892–1973), cuja obra parte do imaginário da inocência infantil para contar histórias de reinos e batalhas fictícias em que crianças pré-adolescentes são submetidas à uma violência perturbadora. Nas 15 mil páginas que compõem o épico romance ilustrado The Story of the Vivian Girls, in What Is Known as the Realms of the Unreal, of the Glandeco-Angelinnian War Storm, Caused by the Child Slave Rebellion (A história das meninas Vivian, naquilo que é conhecido como Os Reinos do Irreal, da Tempestade da Guerra Glandeco-Angelinnian, causada pela rebelião da criança escravizada), Darger retrata cenas de tortura e guerra, crianças transgênero e seres extraordinários, misturando pesadelo e conto de fadas. Assim como Darger, Feher utiliza uma imaginário que evoca o universo imaginado das fábulas infantis, ao qual insere narrativas e símbolos que desviam um primeiro olhar capturado pela beleza e aparente inocência desses trabalhos para tratar dos aspectos mais conflituosos que caracterizam um estar no mundo como mulher e a relação entre o humano e o não-humano. Na instalação O conflito entre a águia e a serpente, a artista traz o desenho para o espaço pela primeira vez. Para tanto, criou uma estrutura cilíndrica formada de uma série de aros circulares que sustentam os desenhos em papeis recortados de forma orgânica, ocupando toda a altura do espaço como um grande tronco de árvore numa floresta. Suspensa no centro da sala, a instalação forma uma espécie de coluna vazada que lembra, ainda, a forma da serpente do título, forçando o espectador a se deslocar em torno do trabalho para observar as diferentes cenas que compõem a obra. Em uma dessas cenas observamos corais, água-vivas e seres marinhos que habitam a paisagem do fundo do mar; noutras encontramos florestas onde o macacos e mulheres nuas penduram-se em galhos e trapézios em meio às centelhas que flutuam a seu redor; em outro momento, uma mulher nua que se equilibra em uma parada de mão sobre a relva florida acompanhada de um quati. Há, por um lado, a sugestão de uma certa comunhão entre essas figuras femininas e a fauna e a flora; por outro lado, fica claro que estar nesse ambiente exige um esforço sobre-humano, pois é preciso engenhosidade e persistência para burlar as leis da gravidade. Além das figuras, outros objetos encontrados nessas cenas nos dão pistas de que, nessa mitologia inventada por Fernanda Feher, nem tudo é idílico. Ao lado dos coloridos cogumelos que parecem saídos das fábulas infantis convivem ossos, foices e serpentes que parecem trazer um sinal de mau-agouro; dos olhos vazados de uma caveira abandonada na relva brotam flores azuis como aquelas desejadas por Heinrich von Ofterdingen no livro de Novalis (1772-1801); romance que possivelmente deu origem a associação entre essa cor e o sentimento de tristeza no imaginário ocidental. A comunhão entre as imagens de figuras femininas e o mundo natural aparece, ainda, nos desenhos de parede apresentados na exposição. Esse imaginário próprio, em que predominam o caráter anímico dos animais e a nudez das figuras femininas, aponta para um tempo e espaço indeterminados e remete à uma ordem mítica cujos signos e simbolismo fazem parte de um repertório pessoal adquirido ao longo dos anos. Há, sem dúvida, um tanto de utopia na visão de um feminino que se funde com a natureza. A correspondência entre essas duas entidades fica evidente em uma série de trabalhos recentes intitulada Corpo Semente (2020), em que Feher modelou corpos femininos em escala real utilizando diferentes tipos de argila; a identificação desse elemento com o feminino sendo algo recorrente em inúmeras narrativas mitológicas (Cibele, Gaia, entre muitas outras). Nessas obras, a terra e a mulher se tornam uma só; ideia que se torna ainda mais sublinhada pelo fato de que as silhuetas de argila das figuras são preenchidas por uma variedade de plantas simbólicas e características da flora local. Para Fernanda Feher, seria impossível produzir uma arte que não estivesse intimamente ligada a sua experiência. É justo especular, portanto, que a recente experiência da maternidade tenha contribuído para um pensamento em torno do corpo feminino como inseparável da natureza, algo incontornável aos processos de gestação, parto e amamentação. Mas não apenas isso. A capacidade - ou poder - de gerar uma vida, está ligada também a uma maior conscientização sobre as relações entre o humano e o não-humano, na medida em que desmistifica a divisão artificial entre esses modos de existir. Em outras palavras, nos oferece a possibilidade de questionar uma ideia de hierarquia propagada pelo pensamento ocidental segundo a qual a natureza se encontra em posição inferior à cultura ou à civilização. Nesse sentido, o foco recente do trabalho de Feher se volta para o que significa estar no mundo como mulher ou, mais precisamente, estar em um mundo estruturado a partir de bases patriarcais. Sua abordagem é algumas vezes otimista, outras vezes pessimista, mas quase sempre permeada pelo humor e pela sugestão de que é possível transformar nossas relações inter e extra humanas. No que diz respeito a linhagens artísticas, eu diria que a obra de Fernanda Feher encontra um de seus paralelos mais interessantes em alguém como Leonora Carrington (1917-2011), com sua fascinação pelos animais, o sobrenatural, o profano, o humor, e sua consciência de um mundo não humano. Além de pintora, a artista foi também uma talentosa escritora. Em uma de suas principais obras literárias, The Hearing Trumpet, Carrington imagina uma comunidade pós-apocalíptica regida por um matriarcado que compactua com espíritos pagãos e com os animais. Nessa narrativa utópica, o feminino é finalmente libertado da estrutura imposta pelo patriarcado que subentende, dentre outras hierarquias impostas, a superioridade do humano (homem) em relação às “bestas” (mulheres e animais) por serem os detentores da razão. A sugestão é que a obra de Feher parte de uma perspectiva análoga, compartilhando com Carrington o senso de humor, o apreço às forças sobrenaturais e pagãs, o entendimento do humano como parte da natureza. Em última instância, trata-se de uma visão de mundo alternativa àquela produzida pela lógica patriarcal que engloba estado, igreja e família, atribuindo papeis subalternos à mulher dentro dessas instituições. Nos trabalhos de Feher, diversas narrativas são construídas de maneira não-linear e não-cronológica, apresentando “narrativas dentro da narrativa” que criam múltiplos pontos de entrada para o espectador. Elementos e motivos simbólicos se repetem dentro um tableau em que a natureza é retratada de maneira minuciosa, com seu colorido fascinante, habitada por figuras anônimas, simbólicas ou históricas. Na série de trabalhos exibidos na Galeria Millan, a artista faz alusão a duas célebres figuras femininas da história da arte. Uma delas é Cecilia Gallerani, jovem de origem nobre, que possuía uma sólida educação artística, tornando-se a amante favorita de Ludovico Sforza, um dos patronos de Leonardo da Vinci. Em Dama com Arminho (1489-1490), Da Vinci retratou a adolescente Gallerani com o pequeno animal em seus braços, no que, segundo alguns historiadores da arte, seria um símbolo de pureza. Outras interpretações sugerem, no entanto, que o pintor tenha escolhido o arminho em virtude da condecoração de membro da Ordem do Arminho concedida a Sforza por Ferdinand I em 1488. Alguns elementos fazem com que essa imagem esteja em sintonia com o universo de Feher: a imagem de uma mulher de vanguarda do século XV, bem como a correspondência entre o humano e o animal encapsulada na figura do arminho. Outra figura reconhecível nessa série é a jovem retratada em Lady with Unicorn (Senhora com unicórnio, 1505-1506) por Rafael. Esse retrato, que hoje se encontra na Galleria Borghese, em Roma, passou por um extenso processo de restauração em 1934 quando foi transferido de um painel de madeira para tela. A primeira referência à essa pintura foi feita por Perugino em 1760, mais de dois séculos após sua execução, quando foi identificada como Santa Catarina de Alexandria. De fato, naquele momento, a tela havia sofrido uma série de transformações, com outras camadas de pintura aplicadas sobre a original que ocultavam o animal e cobriam os ombros da figura, incluindo, ainda, a imagem de uma palmeira e uma roda que remetia ao instrumento utilizado na tortura de Santa Catarina. Segundo a hagiografia, Catarina foi uma princesa e acadêmica, uma santa virgem que se converteu ao cristianismo aos 14 anos, tendo sido torturada e assassinada aos 18 pelo imperador romano Maxentius. Ou seja, uma espécie de Joana D’Arc da antiguidade. Mesmo após o restauro, há controvérsias em relação a identidade da jovem retratada. Alguns historiadores defendem que seja o retrato da esposa de Agnolo Doni (também retratado por Rafael), enquanto outras teorias apontam para Julia Farnese, amante do Papa Alexandre XI Rodrigo Borgia, uma das figuras mais controversas da igreja católica e cujo sobrenome virou sinônimo de libertinagem e nepotismo. Dentre outras personagens femininas recorrentes, encontram-se as malabaristas, equilibristas e contorcionistas cuja presença evoca a realidade pós-maternidade em que a mulher é convocada a desempenhar várias tarefas simultaneamente. Historicamente, forjou-se uma dinâmica segundo a qual a mulher é quase que exclusivamente responsável não apenas pelo gerenciamento da casa quanto pela manutenção emocional da família. Embora conceitos como carga mental e remuneração do trabalho doméstico tenham ganhado maior visibilidade nos últimos anos, a realidade é que as mulheres ainda desempenham cerca de dois terços de todas as tarefas do lar, segundo consta em relatório publicado pelas Nações Unidas. Esse desequilíbrio no cumprimento do trabalho doméstico não remunerado tornou-se ainda mais acentuado no último ano, quando a pandemia obrigou as famílias a manterem os filhos em casa e um número desproporcionalmente maior de mulheres teve que colocar suas carreiras de lado para dedicar-se ao gerenciamento da casa e das crianças. Finalmente, há ainda um outro tema de interesse de Fernanda Feher cuja importância não pode ser subestimada. Em seu vocabulário pictórico, encontram-se inúmeras imagens que fazem referência a uma diversidade de correntes espirituais pagãs de raiz pré-Cristã, folclórica ou etnográfica. A enforcada, figura clássica do jogo de tarô tradicionalmente retratada como masculina, aparece aqui como uma mulher, embora representada em sua forma clássica, pendurada por um dos tornozelos no galho de uma árvore viva. Trata-se de uma imagem forte, que evoca violência e morte, tendo provavelmente se originado da pintura infamante do Renascimento italiano, gênero de pintura difamatória utilizada para retratar traidores e ladrões. Porém, segundo a simbologia do tarô, o semblante sereno do enforcado sugere que ele ou ela estão ali de comum acordo. Além disso, o fato de estar atado a uma árvore viva significa que a carta se refere à vida, não à morte. É sobretudo uma carta que carrega uma mensagem positiva, na medida em que se refere a uma noção de crescimento espiritual a partir de sacrifícios em nome de causas mais elevadas. Outra referência a essa busca por uma dimensão metafísica do ser aparece na imagem da figura sentada em pose de meditação, prática que vem auxiliar no equilíbrio entre demandas e expectativas externas e o avanço espiritual. Por meio dessas imagens, Feher expressa uma filosofia híbrida e pessoal que busca maneiras de superar as limitações humanas. No que se refere às condições de estar no mundo enquanto mulher, essas limitações se impõem de modo ainda mais arraigado, pois é preciso antes de mais nada superar a ideia de que certas funções sociais pertencem naturalmente ao domínio do feminino. Em O conflito entre a águia e a serpente, Fernanda Feher entrelaça uma série de narrativas que emergem de uma vivência pessoal e que, em última instância, dizem respeito a uma experiência compartilhada por gerações de mulheres que, em algum momento, questionaram a ordem vigente. Nesses mundos inventados, misturam-se a matéria e o espírito, a alegria e a ansiedade, a natureza acolhedora e cruel, a realidade e a utopia, numa espécie de registro visual do aprendizado de como conciliar a existência cotidiana às aspirações para o futuro.

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